Como consumidores do século XXI estamos familiarizados com as batalhas comerciais para impor uma tecnologia no mercado. Atualmente assistimos a lutas entre os sistemas Android e IOS, entre o Windows e o Mac, entre fabricantes de consoles de videogame (PlayStation, WII, XBOX…), entre tipos de motores de automóvel (gasolina, diesel, elétrico, híbrido), e uma longa lista de produtos.
A primeira grande batalha comercial desse tipo ocorreu possivelmente no final dos ANOS 70 e no início dos 80. Foi a luta para impor um padrão de gravação e reprodução de vídeo doméstico, a luta do VHS contra o Betamax.
Era outra época
Estamos nos anos 70. A TV é a rainha do entretenimento doméstico. Não existem consoles de videogame, os computadores pessoais são uma verdadeira raridade e não existe a internet. As audiências de TV são colossais e poucos canais dividem os lucros derivados da publicidade em troca de emitir conteúdos: telejornais, programas de entretenimento e filmes.
Nessa época, a indústria do cinema era a grande ameaçada pelo sucesso da TV. Mas era uma ameaça controlada. As produtoras cinematográficas aguardavam longos períodos de tempo antes de autorizar a emissão de um filme na TV com a finalidade de proteger a venda nas bilheterias. Era um equilíbrio aparentemente estável.
A irrupção do vídeo doméstico
A Sony queria revolucionar o mercado do entretenimento com um gravador e reprodutor de vídeo doméstico, parecido com a fita cassete de áudio tão utilizada na época. E queria fazer isso de sua maneira: com um produto de alta qualidade, com um padrão de sua propriedade e um preço elevado.
Assim, em 1975, realiza o lançamento de seu formato Betamax. O sistema herdava características dois formatos precedentes: o formato de câmera de vídeo da Sony (Videocorder) e o U-Matic (formato profissional). Funcionava realmente bem, tanto a nível mecânico (o sistema de fitas) como a nível de qualidade. Para superar as dificuldades técnicas, os engenheiros da Sony desenvolveram um sistema de gravação “densa” (daí seu nome Betamax, que provém do termo japonês “beta”, que significa espesso, denso).
Um ano depois, a JVC lança seu formato de vídeo alternativo, o VHS (Video Home System). O enfoque da JVC era mais pragmático: um sistema de vídeo simples e barato. Desta forma, iniciou-se a guerra dos formatos de vídeo doméstico.
“The winner takes it all”
Existia a possibilidade de que o Betamax e o VHS convivessem no mercado junto com algum outro formato que surgiria mais tarde (alguém se lembra do Video2000 promovido pela Philips e a Grundig?). No final das contas, um usuário de gravador de videocassete era, de certa forma, autônomo: comprava suas fitas virgens, gravava as emissões de TV e as reproduzia quantas vezes queria. O gravador de videocassete incorporava funcionalidades que, naquela época, pareciam ser de ficção científica: você podia programar a hora da gravação do vídeo e o canal que desejava gravar, enquanto “curtia” um fim de semana na praia ou simplesmente assistia outro canal de TV.
Porém, o mercado dos gravadores de videocassete apresentava a característica de externalidade de rede. Considera-se que um produto tem externalidade de rede quando o valor que oferece a seu usuário cresce proporcionalmente ao número de pessoas que utilizam o mesmo produto. O Facebook, o WhatsApp ou a própria internet têm esta propriedade: quantas mais pessoas utilizam o WhatsApp, melhor é para cada um dos usuários.
No caso do vídeo, a externalidade de rede chegava por duas vias: (1) poder compartilhar conteúdos gravados com amigos e (2) o surgimento de um novo negócio promovido pelas produtoras cinematográficas, o dos videoclubes, que não iam permitir a convivência de múltiplos formatos de vídeo, já que isso lhes obrigaria a duplicar os estoques de filmes em cada estabelecimento.
Rapidamente se viu que, nesta batalha para estabelecer um formato de vídeo, só ia sobrar um.
As chaves da vitória
A Sony começou antes, era uma empresa tecnológica de prestígio, seu produto era bom… mas a vitória foi do VHS, que se impôs como padrão de vídeo doméstico em todo o mundo até a chegada do DVD muitos anos depois.
Agora veremos alguns fatores que determinaram essa derrota, fatores que ainda hoje continuam sendo uma fonte de inspiração para qualquer departamento de Marketing que se enfrente ao lançamento de um novo produto.
A qualidade não é tudo
O Betamax era melhor que o VHS. A qualidade de imagem e, especialmente a de som, eram superiores e, o sistema mecânico da fita de videocassete, muito mais confiável e robusto.
Porém, o VHS era superior em um único aspecto: a duração das fitas. O Betamax só permitia uma hora de gravação e isso não dava nem para gravar um jogo de futebol. O VHS permitia gravar 2 horas e rapidamente foram desenvolvidas novas fitas e sistemas de gravação que permitiam chegar a 4 e até 8 horas de gravação. Embora cada uma dessas melhorias resultasse em uma perda de qualidade (mais informação era armazenada no mesmo espaço, o que significava uma redução do nível de detalhe), o consumidor gostou mais da possibilidade de realizar longas gravações que de desfrutar de uma boa qualidade de imagem e som.
O preço
A Sony nunca foi uma marca barata, esta não é precisamente sua posição no mercado. Seus televisores TRINITRON foram durante muitos anos os únicos a oferecer uma tela verticalmente plana e uma maior resolução de imagem, sendo, por isso, vendidos a um preço superior ao dos seus concorrentes.
Mas lutar em um mercado no qual só pode existir um único ganhador com um preço alto é uma dificuldade agregada difícil de se resolver. Um reprodutor Betamax podia ser 3 vezes mais caro que um VHS. Uma carga pesada demais… para uma fita com tão pouco tempo de gravação.
A política de licenças
O Minidisc, os cartuchos de videojogos MSX, a PlayStation… A Sony sempre apostou por formatos de alta qualidade da sua propriedade e o Betamax não foi uma exceção. Inicialmente quis manter seu padrão absolutamente protegido e, quando decidiu abri-lo a outros fabricantes, impôs uma política de licenças muito cara.
A JVC preferiu sacrificar os lucros derivados da concessão de licenças de sua tecnologia VHS para favorecer a implantação de um padrão dominante. Em 1984 só 12 companhias promoviam o formato Betamax contra os 40 fabricantes que apoiavam o VHS.
Em um entorno onde apenas pode sobreviver um padrão, apostar por uma política restritiva de licenças é muito arriscado. Para implantar um formato, é necessário cooperar com os concorrentes: assim é mais fácil criar um novo mercado e, o mais importante ainda, você acaba desincentivando a concorrência. Se a Sony tivesse sido mais aberta, talvez a JVC teria optado por se unir ao padrão Betamax.
O controle dos conteúdos
Acontece em muitas indústrias. Os fabricantes de televisores dependem de que existam canais emitindo conteúdos. Os fabricantes de computadores dependem dos fabricantes de software. A Apple e a Google dependem de que existam aplicativos na Apple Store e no Google Play.
O surgimento dos videoclubes criou uma dependência com as produtoras de cinema. E, em entornos com dependências, é necessário saber se entender com as indústrias relacionadas com seu produto. A Sony começou com o pé esquerdo sua relação com as produtoras: em 1979 teve que se enfrentar a uma ação judicial impetrada pela Universal Studios e a Disney, as quais afirmavam que era ilegal comercializar um aparelho que permitia gravar os conteúdos emitidos pela TV. Conhecem esse argumento? Quem é o culpado da pirataria: o consumidor pirata ou o fabricante de tecnologia que viabiliza a pirataria? É um assunto totalmente vigente na internet.
A Sony ganhou este litígio mas saiu prejudicada. Ao contrário, a JVC foi capaz de formalizar alianças com algumas das cinematográficas mais importantes, como a Paramount ou a própria Disney. Estes acordos facilitaram a existência de uma maior oferta de títulos no formato VHS nas estantes dos videoclubes. Os donos desses estabelecimentos rapidamente perceberam que os filmes em VHS eram mais alugados, motivo pelo qual tinham mais unidades disponíveis… iniciando-se um círculo vicioso para o Betamax (e virtuoso para o VHS).
Sobre este problema, circula a lenda urbana de que o Betamax desapareceu pela negação da Sony a permitir que as distribuidoras pornográficas utilizassem seu formato. Existe possivelmente alguma coisa de verdade nessa lenda, mas é muito difícil que somente esta negação possa explicar por si mesma toda a história.
A Sony aprendeu bem a lição e, de acordo sua estratégia de manter o controle da experiência de uso de seus produtos, entrou no mundo dos conteúdos adquirindo a Columbia Pictures Enterteinment em 1989 (atualmente Sony Pictures).
O fim dessa história
Em 1981, o VHS já tinha 75% da cota de mercado nos Estados Unidos. Em 1988, a Sony começou a fabricar vídeos em VHS, certificando sua derrota. Por sua parte, o formato VHS converteu-se no padrão de vídeo doméstico durante mais 16 anos, até ser substituído totalmente pelo DVD em 2005 (depois de 5 anos de convivência de ambos os formatos).
Desde então, temos vivido esse tipo de luta uma e outra vez. O Android (Google) versus o IOS (Apple) é o exemplo mais recente. A Apple desempenha o papel da Sony: padrões de sua propriedade, excelência do produto, controle da experiência do usuário, política mais restritiva para autorizar aplicativos, etc. E a Google desempenha o papel da JVC: padrão mais aberto, menos restrições, etc. Como aconteceu na guerra dos gravadores de videocassete, a Apple começou antes e aplicou preços mais altos, mas a Google conseguiu a maior cota de mercado.
A posição da Apple será boa enquanto conseguir que os criadores de conteúdos (os apps) continuem a fazer o esforço por desenvolver aplicativos para os dois sistemas. O fato de que existam mais pessoas utilizando o Android não prejudica os usuários do IOS… sempre e quando continuem a existir aplicativos em IOS. Mas… o que aconteceria se algum dia os fabricantes de apps optassem por desenvolver apenas para o Android, valorizando a economia de custos em detrimento da perda de clientes potenciais? Essa ameaça faz lembrar muito das produtoras de cinema proporcionando somente cópias em VHS aos videoclubes.
Lições dessa história
- A estratégia de comercialização de um produto é radicalmente diferente quando se trata de estabelecer um padrão no mercado.
- Para saber se estamos lutando por estabelecer um padrão, um fator chave é a externalidade de rede: o fato de que um usuário seja beneficiado por existirem muitos mais usuários utilizando o mesmo produto.
- Em entornos de luta para estabelecer um padrão, a cooperação entre concorrentes e os acordos com as indústrias relacionadas com nosso padrão são fatores de sucesso.
- Identificar os atributos de um produto que são decisivos para o consumidor é fundamental desde a própria concepção do produto. A Sony decidiu apostar pela qualidade de imagem e de som em detrimento da duração do tempo de gravação, mas essa não foi a escolha do consumidor. Os estudos de mercado do tipo Conjoint podem ser uma boa ajuda para identificar esses atributos decisivos.