Lançar um produto é uma coisa assim como a hora da verdade de uma empresa, o momento de se enfrentar ao inconstante consumidor, e que pode mudar o rumo do acontecer de muitos projetos, seja para o bem ou para o mal.
A história empresarial está repleta de grandes relatos sobre pioneiros que lançaram novos produtos que acabaram revolucionando o mundo. Mas não são tão famosas as histórias dos grandes fracassos, e ainda muito menos a dos produtos inexpressivos que, sem ser um grande fracasso, passaram sem glória pelo mercado.
Iniciamos com este post uma série dedicada a pessoas que carregam sobre si o peso dessa responsabilidade dentro uma empresa: os product managers. Assim sendo, iremos oferecer uma série de histórias inspiradoras que revelam os fatos que caracterizaram lançamentos de sucesso e lançamento falidos; são histórias humanas, que vão além muito do mundo do marketing.
Achei conveniente começar com a história de um grande produto, esquecido nos tempos de hoje. Um produto que revolucionou a sociedade e que foi lançado nas mais difíceis condições possíveis: a história do Olivetti Programma 101.
Os computadores dos anos 60
Primeiro é preciso que nos coloquemos na situação. Estamos nos anos 60. Os primeiros computadores tinham aparecido durante a Segunda Guerra Mundial para a realização de cálculos balísticos e a decodificação de mensagens encriptadas. Essa ideia tinha dado lugar a uma indústria nos anos 50-60 dominada por empresas norte-americanas. Era a indústria dos grandes computadores que ocupavam salas inteiras com armários repletos de componentes. A IBM era a referência no setor.
Os computadores eram uma coisa extremamente distante do consumidor comum e causavam inclusive um certo temor. As histórias de ficção científica daquela época costumavam falar de poderosos computadores que seriam capazes de controlar algum dia as vidas das pessoas (e talvez não estivessem muito enganadas).
Uma empresa diferente, a Olivetti
A Olivetti foi fundada na Itália por Camilo Olivetti como uma fábrica de máquinas de escrever. Contudo, a partir de 1933 e sob a direção do filho do fundador, Adriano Olivetti, a Olivetti transformou-se em uma empresa única. O Adriano é um representante moderno da longa tradição humanista italiana. Em sua concepção de empresa, prestou uma grande atenção ao desenvolvimento da tecnologia, à inovação, à qualidade dos produtos e ao design, além de manifestar uma grande sensibilidade pela dimensão social da empresa, cuidando a relação com os trabalhadores e o território onde estes desenvolvem sua atividade. A Olivetti era uma grande família de apaixonados pela tecnologia e inovação, uma espécie de sociedade utópica.
O Adriano teve a intuição de que a tecnologia devia chegar aos lares e, assim, investiu fortemente em um insólito departamento de P&D numa época em que a Europa estava ainda se recuperando dos efeitos devastadores da Segunda Guerra Mundial. A Olivetti organiza então um laboratório de pesquisa formado por mais de 400 pessoas com um ambiente de trabalho maravilhoso, segundo as palavras dos próprios engenheiros.
“Estávamos imersos em um ambiente onde tínhamos uma grande quantidade de conhecimento a nossa disposição. Tenho a ideia de que as coisas sempre nascem e crescem quando existem as condições propícias, ou seja, um terreno fértil. E quando o terreno fértil é bom, cedo ou tarde acaba nascendo alguma coisa. É fisiológico, natural, a natureza é assim.”
Nessa época, a Olivetti faz o lançamento da Elea 9000, a primeira grande calculadora europeia que consegue competir com a indústria norte-americana; um produto nascido em uma fábrica do norte da Itália, uma região única e privilegiada no mundo, capaz de conjugar a criatividade e o bom gosto latino com o rigor, a engenharia e a inovação própria do Norte Europeu; e que é também o berço da FIAT, da Pirelli e das grandes marcas do design.
O projeto
A Olivetti sofre um duro golpe em 1960 com a morte de Adriano. Seu filho Roberto dá então continuidade ao sonho do pai fazendo um desafio aos engenheiros: criar um computador nunca visto antes, diferente dos grandes computadores da época, um computador ao alcance de qualquer pessoa.
A tarefa foi encomendada a Pier Giorgio Perotto. Em 1962, Perotto dá início a um projeto inimaginável: criar um computador de tamanho reduzido que possa ser manejado por um usuário não especializado. O novo produto tinha que ser oferecido a um preço razoável para que qualquer pessoa pudesse tê-lo em sua mesa de trabalho. O projeto foi iniciado com uma ideia abstrata como ponto de partida, mas ninguém podia imaginar aonde acabariam chegando. Mas Perotto estava certo de uma coisa: teriam de criar um produto que fosse capaz de convencer a empresa de efetivar seu lançamento, porque a coisa era tão inovadora que nem conseguiam explicá-la direito.
O produto
Os engenheiros enfrentaram-se a desafios monstruosos sem ter nenhuma referência como fonte de inspiração. Como fabricar um pequeno computador quando o ponto de referência eram as salas cheias de componentes da IBM? Só para se ter uma ideia, a memória dos computadores daquela época eram dispositivos gigantescos e barulhentos, motivo pelo qual os engenheiros desenvolveram um novo sistema que denominaram linha magnetoestritiva, que era radicalmente diferente. Não puderam evoluir a partir de uma solução técnica preexistente, tiveram que procurar uma nova alternativa, mas foi justamente isso o que lhes permitiu enfrentar o desafio com uma postura totalmente original.
Com essas soluções tecnológicas inovadoras, a Olivetti criou um produto realmente redondo. A usabilidade foi um aspecto profundamente trabalhado. Criou-se uma linguajem de programação própria que podia ser entendida por qualquer pessoa. O manual de instruções do Programma 101 é um autêntico prodígio que permitia que o computador fosse utilizado até mesmo por uma criança. Mas é óbvio que quanto mais se simplificasse a utilização para o usuário, mais difíceis as coisas se tornavam para os engenheiros.
E o que dizer do design? O Programma 101 tinha que poder ser colocado em cima de uma mesa, em um escritório ou mesmo em uma casa. Não podia ter um aspecto desleixado. O resultado foi uma autêntica peça de museu. Com formas elegantes, possuía 3 teclados (numérico, operações e de acesso à memoria). Os resultados eram visualizados através de uma mini-impressora integrada (não incorporava um monitor) parecida com a de um terminal de ponto de venda atual. Tinha duas luzes que indicavam quando o computador estava processando e quando estava disponível para receber instruções. A programação podia ser salva em cartões magnéticos, precursores dos futuros disquetes.
A Olivetti podia ser considerada a Apple dos anos 60, pela especial atenção que prestava ao design de seus produtos, dentro da mais pura tradição italiana.
A perseverança
Qualquer boa história tem seu momento dramático. A Olivetti sofreu uma crise financeira na metade do projeto. As grandes famílias empresárias italianas tomaram o controle da companhia e decidiram vender a divisão de computadores à General Electric. Porém, o Programma 101 acabou sendo salvo de ser vendido graças a um funcionário que uma noite alterou a classificação interna do produto de “computador” para “calculadora” em todos os registros da empresa.
A pequena equipe da Olivetti continuou então trabalhando em sua nova criação no mesmo edifício comandado agora pela General Electric, o que acabou produzindo situações francamente embaraçosas, e sem o apoio da nova diretoria da companhia, a qual decidiu concentrar todos seus esforços na linha de produto das máquinas de escrever. Segundo as afirmações de um dos quatro engenheiros envolvidos no projeto:
“A partir daquele momento e da parte do Perotto, era claramente perceptível uma certa pressa (…). Primeiro façamos o produto para que ninguém de fora possa copiar nossa ideia. Mas era ainda mais preocupante a questão de ‘façamos já este produto para evitar que qualquer ignorante que não saiba do que se trata, principalmente porque essa pessoa ignorante pode ser algum superior nosso, decida que é melhor cancelar o programa'”
O novo diretor decide então encerrar o projeto manifestando não ter nenhuma fé no produto, sem compreender a joia que tinha nas mãos. Suas célebres palavras foram:
“Não esperamos fazer nenhuma grande coisa com esse produto, em minha opinião é totalmente desnecessário. A melhor prova de que desnecessário é que ninguém até hoje quis fabricar um produto desse tipo”.
Um “verdadeiro visionário” fazendo uma ode ao espírito inovador.
A apresentação
Apesar de todas as dificuldades, o ano 1964 viu nascer o Programma 101 graças à fé inquebrantável de uma equipe de engenheiros inspirados por um idealista: Roberto Olivetti. O produto é apresentado na Exposição Universal de Nova York. Toda a exposição gira em torno aos grandes computadores, como os da IBM, que precisam de instalações próprias por conta de seu grande tamanho.
O Programma 101 ocupa um papel secundário dentro da apresentação da empresa, por trás de uma nova calculadora mecânica que é a verdadeira estrela. É apresentado como protótipo do que a Olivetti poderia chegar a fazer no futuro. Porém, o Programma 101 rapidamente eclipsa tudo o que lhe rodeia. São feitas demostrações de como o novo aparelho pode calcular a órbita de um satélite em 2 segundos diante de todo o público. As pessoas se sentem fascinadas por aquela máquina capaz de fazer cálculos programados complexos e que podia ser vista e tocada em cima de uma mesa.
Os espectadores viram o que os diretores e burocratas não tinham conseguido ver: o nascimento de uma nova categoria de produto: o computador pessoal; 15 anos antes de que Steve Jobs e Bill Gates começassem suas aventuras empresariais.
O sucesso e o legado
Foram vendidas mais de 40.000 unidades do Programma 101. Chegou a ser utilizado em escolas com fins didáticos, sendo que a NASA e o exército americano utilizaram-no para diferentes finalidades, entre elas calcular as rotas da missão Apolo 11. Foi um sucesso absoluto e inesperado, uma autêntica bofetada à indústria norte-americana dada por uma fábrica de máquinas de escrever italiana.
As reações não demoraram muito em aparecer. A HP compraria 100 unidades do Programma 101 para lançar posteriormente seu próprio computador pessoal: o HP9100, mais potente e com um monitor integrado. Assim iniciava-se a corrida que conduziu até os PCs, os laptops, os smartphones… e tudo o que está ainda por chegar.
Lições dessa história
- O espírito de inovação deve emanar da diretoria, de um líder. Mas, depois de ser implantado no ADN da empresa, já não é nada fácil de erradicá-lo, passando a ser um ativo valioso. Os departamentos de Marketing devem ouvir o que os membros de sua equipe de desenvolvimento têm a dizer e ficar atentos às ideias que surgem daí.
- Um produto inovador exige audácia e perseverança. Ninguém pode aspirar a criar uma coisa realmente nova sem assumir riscos.
- Colocar o consumidor no centro costuma dar bons resultados. Sempre surgem novas oportunidades quando aproximamos uma tecnologia inovadora (normalmente complexa) do consumidor comum.
- O cuidado pelos detalhes é um fator decisivo. A equipe da Olivetti compreendeu que um computador em casa tinha que ser uma coisa bela.
- O fato de que ninguém tenha querido fazer antes nem sempre é um sinal de que não vale a pena tentar fazê-lo agora.
Um documentário
Recomendo assistir o seguinte documentário sobre essa história.
[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=lux17f4pbYA[/youtube]